Não olhes o rio apenas como quem olha,
aprende com os peixes o segredo das águas
o acordar feliz das aves e das plantas
com cânticos nos bicos e alucinação de cores.
Simples, ali, como um acorde de madressilva
ou harpas de mulheres simples, mulheres corajosas
fazendo as águas e pedras e tripeças
um arraial de sons,
mergulhando, esfregando, batendo
roupa brava de suores aflitos.
José Duarte da Piedade, Não olhes como quem olha…
Boca de Pote
2024
De uma coleção de cacos e pedaços de flora colhidos das margens do rio Almonda destaca-se um pedaço de uma peça de barro. Um caco.
A sua textura original, sucumbida e gasta, apresenta novas formas escalpeladas, marcas da passagem do tempo, e outras acrescentadas, provavelmente pelas diferentes forças da corrente fluvial. A sua forma convoca a relação do que está a ser visto com o seu “ter sido”, remetendo a um mistério, a uma memória de tal modo colhida e agora imortal, que instiga a possibilidade de recuperar um mundo vivo ou que foi vivo. E a sua tonalidade ainda clara e pálida - cor que inspira ao lençol de linho – serve de elemento de transporte até um lugar agora distante e inacessível.
O desconhecimento em relação à sua origem, à sua forma completa, ao motivo da sua fragmentação, estende a quem a observa um maravilhamento no oculto e na forma insólita com que se apresenta, dando espaço ao imaginário para conceber a sua proveniência.
Um caco vestígio, um caco documento. A boca de um pote, de uma jarra, agora descoberta de um antigo monte de sedimentos e água fluvial, foi colhida durante o estio nas margens baixas do rio. Rio, que pelo seu leito viu fazerem-se morar mulheres de vestes simples e lenços à cabeça. As mulheres lavadeiras levavam, normalmente, alguidares de zinco ou de barro e iam lá para baixo lavar a roupa. Metiam-se no rio. Os gestos das lavadeiras, o confronto dos linhos mergulhados e sacudidos na água e o brilho do orvalho esvoaçante saído do tecido esfregado na tripeça, possuem um carácter etnográfico, que inspiram a construção do retrato de um cenário do quotidiano destas mulheres. Este, servia de ponto de encontro para quem nele passava normalmente às segundas-feiras. Era aquase sempre à segunda-feira.
A mulher lavadeira é parte do rio. O que nele se encontra é vestígio que remete para uma memória coletiva guardada no que deixa ficar escondido e preservado nas suas margens.
Boca de Pote culmina no encanto pelo mistério e peculiaridade que esta boca de pote oferece ao ser descoberta. Celebra-se assim um retrato, um imaginário e um objeto.