Não olhes o rio apenas como quem olha,
aprende com os peixes o segredo das águas
o acordar feliz das aves e das plantas
com cânticos nos bicos e alucinação de cores.
Simples, ali, como um acorde de madressilva
ou harpas de mulheres simples, mulheres corajosas
fazendo das águas e pedras e tripeças
um arraial de sons,
mergulhando, esfregando, batendo
roupa brava de suores aflitos.
José Duarte da Piedade, Não olhes como quem olha…

Boca de Pote
De uma coleção de cacos e pedaços de flora colhidos das margens do rio Almonda destaca-se um pedaço de uma peça de barro. Um caco.
A sua textura original, sucumbida e gasta, apresenta novas formas escalpeladas, marcas da passagem do tempo, e outras acrescentadas, provavelmente pelas diferentes forças da corrente fluvial. A sua forma convoca a relação do que está a ser visto com o seu “ter sido”, remetendo a um mistério, a uma memória de tal modo colhida e agora imortal, que instiga a possibilidade de recuperar um mundo vivo ou que foi vivo. E a sua tonalidade ainda clara e pálida - cor que inspira ao lençol de linho – serve de elemento de transporte até um lugar agora distante e inacessível.
O desconhecimento em relação à sua origem, à sua forma completa, ao motivo da sua fragmentação, estende a quem a observa um maravilhamento no oculto e na forma insólita com que se apresenta, dando espaço ao imaginário para conceber a sua proveniência.
Um caco vestígio, um caco documento. A boca de um pote, de uma jarra, agora descoberta de um antigo monte de sedimentos e água fluvial, foi colhida durante o estio nas margens baixas do rio. Rio, que pelo seu leito viu fazerem-se morar mulheres de vestes simples e lenços à cabeça. As mulheres lavadeiras levavam, normalmente, alguidares de zinco ou de barro e iam lá para baixo lavar a roupa. Metiam-se no rio. Os gestos das lavadeiras, o confronto dos linhos mergulhados e sacudidos na água e o brilho do orvalho esvoaçante saído do tecido esfregado na tripeça, possuem um carácter etnográfico, que inspiram a construção do retrato de um cenário do quotidiano destas mulheres. Este, servia de ponto de encontro para quem nele passava normalmente às segundas-feiras. Era aquase sempre à segunda-feira.
A mulher lavadeira é parte do rio. O que nele se encontra é vestígio que remete para uma memória coletiva guardada no que deixa ficar escondido e preservado nas suas margens.
Boca de Pote culmina no encanto pelo mistério e peculiaridade que esta boca de pote oferece ao ser descoberta. Celebra-se assim um retrato, um imaginário e um objeto.
Boca de Pote
Curta-metragem
''40'15

